Treta do ano 2015 (atrasada): “ah e tal, mas o PS não ganhou as eleições!”
Escrevi isto originalmente em 2016, relativamente pouco tempo depois da formação da chamada “Gerigonça” (PS+PCP+BE). Republico-o agora, como um lembrete de que eleições legislativas servem para eleger um parlamento, e não um governo. #politica #portugal
Existem actualmente 21 partidos políticos legalmente reconhecidos em Portugal.1 Isto torna possível, em teoria, que umas eleições legislativas possam ter um resultado tal que o partido mais votado tem, digamos, 15% dos votos: imaginando que os votos se repartem (maioritariamente) por 10 partidos, se os restantes 9 tiverem (por exemplo) em média 8 a 9% dos votos, isto é possível. E não torna o resultado das legislativas menos legítimo ou menos democrático—é um resultado tão válido e vinculativo como outro qualquer.
Continuando com a hipotética experiência, suponhamos que o partido “vencedor” das eleições—chamemos-lhe AEE—é o único que é anti-Europa e anti-Euro, ou seja, defende a saída do país da União Europeia, e por conseguinte da moeda única. Não sendo o método de Hondt perfeito, parece no entanto claro que de um tal resultado eleitoral resultaria um parlamento em que uma maioria absoluta de deputados seria a favor da manutenção do país, tanto no Euro como na UE. Que sentido teria dizer que deveria ser o partido AEE a formar governo, porque “venceu as eleições”, e que, pior ainda, pela mesma razão os demais deputados deviam abster-se e não fazer cair um tal executivo, para “respeitar a vontade do povo”? Quando 85% do eleitorado escolheu claramente opções contrárias às defendidas pelo AEE? Não teria sentido absolutamente nenhum.
E no entanto, ajuste-se as percentagens e o número de partidos, troque-se anti-Euro e anti-UE por continuação da política de austeridade, e AEE por PàF, e foi precisamente isso que muita da direita portuguesa bradou aos céus, e muitos jornalistas obedientemente difundiram, sem o mínimo espírito crítico: que deveria ser a coligação PàF a formar governo, porque “ganhou as eleições”, fazendo tábua rasa do facto de que uma maioria absoluta de eleitores escolheu travar (pode-se discutir se em maior ou menor grau) a austeridade. É-me inconcebível que um político de carreira—ou um jornalista, para esse efeito—não saiba isto. E é bom lembrar que a omissão também é uma forma de mentira.
É claro que, depois de eleito, se pode discutir o quão ameno será um tal parlamento à formação de um governo, mas essa é uma questão posterior, e cuja resolução não é o objectivo de umas eleições legislativas: estas servem para eleger um parlamento, não um governo. Ignorar este facto é tentar subverter a vontade do eleitorado. Lá porque muita da direita se esteja nas tintas para o eleitorado, não faz dessa tentativa uma falta menos gravosa.
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Com a devida vénia se faz aqui referência ao blog do Prof. Ludwig Krippahl, onde se publica com regularidade (nem sempre semanal) a “Treta da semana”, de onde surgiu a ideia para o título deste texto.
16 de Janeiro de 2022.