A revolução que falta
Cinquenta anos depois de Revolução dos Cravos, como ficou conhecida a mudança de regime operada a 25 de Abril de 1974, deixo aqui uma pequena reflexão, não tanto sobre o que foi conseguido—que é sobejamente conhecido, quer pelos apoiantes de Abril, quer pelos seus detractores—mas sobre aquilo que ficou a faltar. Algo que continua a causar muita confusão, mesmo entre as mais férreas hostes da revolução. #portugal #revolução #cravos #25abril
Como tantas outras coisas, a liberdade—e a privação da liberdade—surgem de várias formas. Umas mais visíveis do que outras—e este talvez seja um bom sítio para começar. Especialmente nas faixas etárias mais velhas—embora cada vez mais também nas mais novas, ainda que sem memória directa—ouve-se de tempos a tempos, alguém dizer que “dantes é era bom,” “o país ficou muito pior depois do 25 de Abril,” ou afirmações afins. Afirmações das quais discordo em absoluto, com uma importante excepção: durante a vigência do Estado Novo, todos, apoiantes ou detractores, estavam cientes da natureza do regime. Era um regime autoritário, repressivo, conservador nos costumes, mas liberal q.b. na economia.1 Entretanto, dá-se o 25 de Abril, o Estado Novo é derrubado, é proclamada uma nova constituição—estabelecendo direitos, liberdades, e garantias—e adicionalmente, são nacionalizadas um assaz extenso leque de empresas, e é feita alguma distribuição da riqueza—que em boa verdade, só pecou por tardia. Mas seria neste último ponto que a proverbial porca viria, volvida uma década e picos, a monumentalmente torcer o rabo.
Isto porque—a subida vertiginosa do Chega nas legislativas de Março passado não obstante—o estado continua muito restrito no seu âmbito de actuação em relação às liberdades de expressão, imprensa, actividade e associação politica, etc. É impensável, por exemplo, pôr alguém na cadeia simplesmente porque o estado não gosta do que a pessoa diz, ou ilegalizar um partido político apenas por decreto executivo. Mas a liberdade politica é apenas uma face da liberdade. Uma outra face, igualmente importante, é a liberdade económica. E é aqui que começam as confusões. Em meados dos anos 80, começaria o processo de liberalização económica, com privatizações, fim de medidas proteccionistas, livre circulação de capitais e, com o transitar de século—e para nossa continuada desgraça—o desmantelamento da moeda nacional.2 Na prática, tal como uma ditadura maximiza a liberdade do ditador e da sua entourage, em detrimento explícito da liberdade de todos os demais, também a liberdade económica maximizou a liberdade de quem é rico—em particular de quem detém os meios de produção, a banca, ou outros activos que gerem rendimento—em explícito detrimento de quem, não estando na posse de tais activos, tem que vender o seu trabalho. Com a sua liberdade de acção económica cada vez mais cerceada, o estado perdeu a capacidade de proteger as pessoas nesta última categoria—a classe trabalhadora—tradicionalmente mais fraca vis-à-vis a voragem do capital—em particular, do capital globalizado que temos hoje. Entre outras coisas, isto explica o fosso crescente entre salários e produtividade.3
O que nos traz ao aspecto em que se está hoje, pior do que antes do 25 de Abril: o regime que temos hoje—em que um cada vez maior número de pessoas é forçada a trabalhar em cada vez piores condições, apenas para ter direito ao básico (ou às vezes nem isso4)—continua a ser um regime repressivo. Menos repressivo que o Estado Novo, sem qualquer dúvida—mas repressivo ainda assim. Só que a repressão é agora feita através de mecanismos económicos—ao invés de mecanismos políticos, como no Estado Novo—e por isso, fica mais difícil de vislumbrar. Pior: os nomes que usamos para designar ou caracterizar o regime económico actualmente vigente—neoliberalismo, mercado livre, liberdade individual—estão eivados de conotações com a ideia de “liberdade.” Não é, por isso, surpreendente que a maioria das pessoas creia que vive em liberdade. Maioria que está a ver a sua vida a estagnar—senão mesmo a regredir—pelo que é também natural a procura de razões para tal estado de coisas. Partindo do pressuposto—errado, mas compreensível—de que se vive em liberdade, tal procura desemboca, quase inevitavelmente, em conclusões disparatadas: ou que afinal a liberdade não é assim tão boa, e se calhar o antigamente não era assim tão mau, ou que a culpa é dos imigrantes, dos ciganos (e de outros ditos “subsídio-dependentes”), da corrupção—como se a pior corrupção que o país enfrenta não fosse a) feita em plena luz do dia, porque b) é perfeitamente legal5—ou outras asneiras de semelhante índole. Sendo uma das consequências a presença, 50 anos volvidos após a Revolução dos Cravos, de 50 deputados (no mínimo) ultra-conservadores, no nosso hemiciclo…
E qual a solução? Eu, que defendo a liberdade individual, proponho que um “mercado de trabalho”—que se pressupõe funcionar segunda a lógica do “mercado livre”—só faz sentido se quem nele participa, não o fizer sob coacção. Isto é, se ninguém for coagido, sob ameaça da miséria, a vender o seu trabalho, mesmo quando a remuneração oferecida não o justifica. Um modo de atingir este objectivo é garantir, a todos os indivíduos, o acesso à sua quota parte dos bens colectivamente produzidos necessários para uma vida condigna. O infelizmente já falecido David Graeber elabora um pouco mais:
É uma solução perfeita? Não—mas não é o meu objectivo aqui debruçar-me sobre este tema, que não é nada simples. O propósito deste texto é expôr uma das razões pelas quais, apesar de a nossa sociedade estar hoje bem melhor do que há 50 anos, ela ainda está longe de ser uma sociedade livre: porque uma sociedade onde a maioria dos seus membros é coagida, sob ameaça da miséria, a vender o seu trabalho como uma mercadoria cada vez mais barata, não é uma sociedade livre. Tapem-se os olhos e ouvidos dos liberais—não vá algum deles ter um colapso—mas a coacção económica também tem outras formas, para além de muitos e/ou altos impostos! Porque no final de contas,
25 de Abril de 2024. Tem comentários a fazer? Óptimo, fico à espera do email!