Notas soltas sobre RBI
Uma discussão no twitter sobre liberalismo acabou no RBI… o que por sua vez acabou neste texto.
O acrónimo RBI quer dizer “rendimento básico incondicional”, e refere-se à ideia de que, numa altura em que fruto do progresso tecnológico, as necessidades de todos podem ser supridas com o trabalho de um cada vez menor número de pessoas, faz sentido – e torna-se exequível – dar a todos um rendimento garantido, uma espécie de ordenado do cidadão, independentemente da profissão que se tenha (se se tiver alguma).
Há uns dias, numa conversa no twitter, dizia o meu interlocutor que “o liberalismo protege a liberdade económica, apenas quando nenhuma outra está em causa”.1 Rapidamente apontei o disparate: é precisamente por causa do que preconiza o liberalismo económico—flexibilização laboral, enfraquecimento do poder dos sindicatos, etc.—que um cada vez maior número de pessoas é coagida, através da ameaça com a miséria, a vender o seu trabalho por um cada vez menor salário. E rematei com a conclusão óbvia: para que a liberdade económica não infrinja nenhuma outra é necessário, no mínimo, que ninguém precise de vender o seu trabalho para viver com dignidade—pois este é o único modo de garantir que a coação referida acima fica impossibilitada. O que é de resto, um dos grandes objectivos do RBI.
Como resposta recebi vários argumentos. Um deles era tão descabido, que o relego para o fim. Quantos aos outros dois, o primeiro era a pergunta da praxe: “e de onde vem o dinheiro?” Como já dizia Aristóteles, o dinheiro é uma ficção colectiva—pelo que basta convencionar a existência (i.e. criar do nada) quanto dinheiro seja necessário. Vivendo nós num tempo em que criar dinheiro é tão fácil como criar bits, a origem do dinheiro necessário para instituir um RBI é um não problema.2
O que nos leva ao outro potencial problema: “ah e tal, mas depois vem a inflação!” A inflação é uma situação que se caracteriza por um aumento generalizado dos preços, incluindo o preço do trabalho (salário). Grosso modo, isto sucede quando existe demasiado dinheiro para a oferta de bens e serviços disponíveis. Tal pode ser o caso porque:
a quantidade de bens e serviços disponíveis sofreu uma diminuição abrupta (como pode acontecer, por exemplo, numa situação de guerra);
foi injectado demasiado dinheiro numa economia, quando esta já se encontra no pico máximo de produção de bens e fornecimento de serviços, ou seja, é uma economia limitada pela oferta (isto foi o que sucedeu no Japão durante a bolha dos anos 80, que viria a colapsar em 1990/91);3
uma combinação de ambas as situações anteriores, como aconteceu com a Alemanha, no período entre as duas guerras: por um lado, para pagar as pesadas dívidas impostas pelos Aliados vitoriosos, o governo alemão começou a imprimir dinheiro como se não houvesse amanhã; por outro, a economia, já fragilizada pelo esforço da guerra que entretanto findara, não conseguia aumentar a produção para acompanhar o aumento na quantidade de dinheiro.
No contexto actual de uma crise sanitária à escala planetária, em que o grande problema é um colapso na procura (deflação), preocupar-se com inflação é, novamente, um não problema. Mas e depois da pandemia? Se se começar a dar dinheiro a toda a gente, isso não vai causar um ajuste da inflação, apenas para ficar tudo na mesma? Sim, esse seria o caso—se a economia estivesse limitada pela oferta! Ou seja, se não houvesse produção alimentar que chegasse para todos, ou se a produção de medicamentos, roupa, etc., não chegasse para suprir a procura, aí sim, a inflação iria entrar em cena e voltar a por tudo, basicamente na mesma. Só que este não é o caso. Muito pelo contrário: por vezes a produção (i.e., oferta) tanto extravasa a procura, que é preciso deitar fora o excedente, para evitar um colapso dos preços!4 Mesmo para além da pandemia, portanto, a inflação continua a ser um não problema.
Mas e se a situação alterar? Por exemplo, pode acontecer que se se implementar um RBI elevado—digamos, ~2000€/mês—as famílias comecem a ter mais filhos, e a população cresça a tal ponto que voltamos novamente à situação de não houver recursos que cheguem para todos. Isto foi o problema que tanto preocupou, idos um par de séculos, o reverendo Thomas Malthus. E é, de facto, um problema bem sério—mas que não altera a veracidade da minha afirmação inicial: a liberdade económica só não infringe os direitos individuais se ninguém puder ser coagido a vender o seu trabalho por tuta e meia, sob ameaça da miséria.
O que nos traz, finalmente, à objecção que falta: a de que (o RBI) «é logo o Estado estar a interferir com a liberdade de decisão em relação ao salário pago por parte das empresas.» A não ser que eu esteja a interpretar muito mal a frase, ela ilustra perfeitamente a razão que leva ao meu escárnio dos modernos ditos liberais. Porque o que se está a dizer, parece-me, é que com um RBI decente, as empresas continuam a poder oferecer salários cada vez mais baixos por trabalhos cada vez mais longos, mas torna-se mais difícil que trabalhadores potenciais os aceitem—porque não existe a necessidade premente de ter um salário, como poderia ser o caso se o RBI não existisse. E isto é visto como uma coisa má! Torna-se assim óbvio o que é a liberdade, versão neoliberal: é a liberdade de poder explorar o trabalho de outrem, sem ter o Estado a meter o bedelho—do mesmo modo como para os liberais do século XIX, liberdade era poder (mal)tratar os escravos como bem se entendia, sem correr o risco de ver o Estado impor qualquer tipo de limites—porque isso seria uma violação da liberdade… do dono do escravo!5
Leitura adicional: mencionei na conversa de twitter original este link, que oferece um outro modo de chegar às mesmas conclusões sobre o RBI. Do mesmo sítio, e ainda sobre (mais ou menos) o mesmo tópico, vale a pena também espreitar isto e aquilo.
5 de Maio de 2020